Aqui começou a nascer a Amazônia, filha da ambição, da fantasia e do genocídio
No centro de Quito, capital do Equador, cruzam-se as Avenidas Amazonas e Francisco de Orellana, indicativas do orgulho dos equatorianos de terem sido, como dizem, os descobridores do maior e mais extenso rio do mundo, o nosso Amazonas.
Em vários outros locais, mas sobretudo na Plaza Grande, acham-se menções à histórica viagem do espanhol Francisco de Orellana que, no meado do século 16, percorreu o grande rio desde as proximidades de suas nascentes, no Andes, até a sua desembocadura e junção ao Atlântico, após a Ilha do Marajó.
A viagem não foi planejada para transcorrer como transcorreu. O jovem Orellana, aos 21 anos, juntamente com um pequeno grupo de aventureiros, queriam chegar ao El Dorado em busca de ouro e especiarias que valiam muito na velha Europa. Partiu do lugarejo que hoje é Quito para juntar-se a Gonzallo Pizarro, tempos depois de terem matado milhares de habitantes naquela região e assim obtendo o domínio do território para os espanhóis. Encontrando-se com Pizarro e seus 220 homens, Orellana logo começou a desentender-se com o chefa da grande expedição.
(Foto Manuel Dutra)
Com o passar dos meses, começaram a sentir falta de comida, além de que não encontravam as riquezas que motivavam a aventura. Com um pequeno grupo, Orellana foi designado para descer o mais rápido possível o rio desconhecido em busca de comida. Só que ele nunca retornou para juntar-se ao grupo maior. Continuou descendo o rio ainda sem nome e, em 2 de fevereiro de 1542, o explorador Francisco de Orellana chegou ao lugar onde o Amazonas se encontra com o Atlântico. Ele foi, ou teria sido, o primeiro aventureiro, de que se tem conhecimento, a ter realizado esse trajeto.
A história dessa viagem tem muitos lances, incluindo um hipotético encontro com as amazonas, as índias guerreiras que “existiam” mas nunca foram vistas.
(Foto Manuel Dutra)
Fantasias
Na análise de textos referentes à colonização do Brasil compete ao pesquisador atenção suficiente a fim de perceber que, naqueles relatos, encontram-se, às vezes, deturpações consequentes do ambiente medieval. “O obscurantismo medieval que, para representar convenientemente os pagãos, ressuscitou quimeras da Antiguidade e inventou outras, sobreviveu em aberrações da natureza personificadas por tribos do Brasil” (BALDUS, 1998, p. 305).
Uma das fantasias características do espanto do europeu está na própria origem do nome da Amazônia, invenção do aventureiro espanhol Orellana no século XVI, assim como tantas outras, como grupos indígenas compostos de gigantes ou de anões, humanos com pés voltados para trás, etc., capacidade inventiva que, durante séculos, alimentou a mega-fantasia do jamais epizncontrado El-Dorado, com todo o repertório de outras fantasias que o acompanharam. E com todas as consequências concretas que tais fantasias geram para indivíduos e grupos. A força das fantasias pode ser bem exemplificada no relato de João Lúcio d’Azevedo (1901, p. 16), a respeito do nome do rio Amazonas. Escreve Azevedo:
“Então, todas as lendas vagueantes nos espíritos adquirem foros de real. O Renascimento presta à bruteza dos selvagens a poesia da Antiguidade. As amazonas passam da Grécia pagã para os recessos da América meridional. Orellana as viu [1540], segundo diz, com seus olhos; … e, em meados do século XVIII, na véspera da Encyclopedia, o sábio La Condamine recolhia, nos próprios lugares, informações que o levavam a não contestar a boa fé do aventureiro castelhano”.
Ainda segundo Azevedo (idem, p. 34) o próprio rio Amazonas perdeu esta designação por um longo período, sendo, no entanto, a lenda e o nome do rio relembrados e avigorados pelos relatos de Cristóbal de Acuña um século mais tarde, assim permanecendo. De fato, em sua Relación, crônica do retorno de Quito à cidade do Pará, mais tarde Belém, da expedição exitosa capitaneada por Pedro Texeira, o cronista jesuíta menciona o “gran Río de las Amazonas, llamado, por error común, … río del Marañón…” (ACUÑA, [1641] 2000, p. 160). A fantasia se impõe como verdade. A viagem de Teixeira, homenageado em Belém com uma estátua à entrada da Estação das Docas, teria sido a primeira de subida e descida do Amazonas, em todo o seu percurso possível.
(Foto Zuíla Dutra)
Três anos antes da viagem de retorno da qual participou Acuña, o capitão Pedro Teixeira (TEIXEIRA, [1639] 2000, p. 140-1), em sua própria Relação escreve que, às proximidades da atual cidade paraense de Óbidos, os tupinambás “nos deram muitas notícias das amazonas, muito averiguadas, que estavam somente a seis jornadas dali; como não as vi, só o afirmo por verdade…”. Lendas vagueantes adquirindo foros de real. Exemplo característico da força das fantasias construídas na comodidade da distância, esquecidas, algumas, por algum tempo; revividas outras, depois. Aspecto fundador do discurso das descobertas.
Como se vê, na busca histórica, a Amazônia é filha da ambição, da fantasia e da eliminação de inúmeros povos pacíficos. Os séculos passam e essa realidade inicial parece perpetuar-se.
Referências
ACUÑA, Christobal de. Nuevo descubrimiento del gran río de las amazonas.
[1641]. Ap. PAPAVERO, Nelson et alii. O novo éden: a fauna da Amazônia
brasileira nos relatos de viajantes e cronistas desde a descoberta do Rio
Amazonas por Pinzón (1500) até o Tratado de Santo Idelfonso (1777). Belém,
Pará: Museu Paraense Emilio Goeldi, 2000, p. 155-189.
AZEVEDO, João Lucio d’. Os jesuítas no Grão-Pará: suas missões e a colonização
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